quinta-feira, 31 de janeiro de 2013


O DOENTE


adoeceu  da alma
puseram a tratá-lo com água
banho silvado de espinho

sopraram os olhos
tentaram matar os sonhos
usando cores na reza

beijaram flores de sal
prenderam o   vento das conchas
nuaram seu corpo no rochedo

aos pássaros da alma
o rumor das águas
numa campa de flores de sal

DIA NUBLADO NA RUA ERNESTO KOBARG

o ipê nos roubou a luz do dia
engordou de tanto amarelo

depois
na calçada

faleceu de chuva

LIÇÃO DE PRIMEIROS SOCORROS


aperte sua garganta
até que  cuspa
venenos das palavras roxas

quanto aos olhos cianóticos
o sangramento da poesia
deixa  mesmo ramificações vermelhas

ao fazer respiração boca a boca
tente traduzir
segredos de sua língua


O PREÇO DO LIVRO

gastei trinta e três reais para ler
o esquimó de fabrício corsaletti
encostado a uma arara
das lojas renner

tinha uma promoção
de boas calças
por apenas trinta e nove reais

só não tinha o meu número

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013


IMAGENS DA HOLANDA

dentro da palma da mão wilhelm nagel guarda um diamante
um parante judeu lhe trouxe da antuérpia
uma alegria aguda lhe toma o corpo
a pedra tem uma dona de nome theodora
 amsterdam parece mais clara nesse dia
a espada era a única coisa que kiguchi-san guardara de sua herança de família. nunca mais voltou à yokohama e os viu depois de seu desterro. lembrou que com essa espada fez três vezes o mesmo ritual: encostou sua lâmina contra a carne de seu peito e puxou-a contra si uns dez centímetros. depois sentou-se na banheira de ofurô e sangrou por duas horas até tornar a água morna água turva de um sangue dissolvido. abriu o quimono e me mostrou as três cicatrizes paralelas em alto relevo cada uma com a largura de um dedo. confessou que  trocou a dor de sua alma pelo rasgo fino feito pela lâmina do kataná. foram três as dores trocadas: o suicídio de sua mãe: a falência de sua empresa: e a mais tenebrosa de todas: o amor carnal que sentia por sua irmã.

terça-feira, 29 de janeiro de 2013



EM BAIXO DOS TRAPICHES NAS MARGENS
DO RIO ITAJAÍ AÇÚ

quantos  passos eu teria contado até chegar ao cargueiro panamenho quantas linhas de solda seriam preciso para juntar a pele de seu dorso a ilusão de sua respiração pausada na casa de máquinas seus andares de tubos até a direção de tudo sua madre do leme

de longe ainda debaixo dos trapiches onde os velhos jogavam seus puçás  e urinavam na sombra azinhavrada eu temia o corpulento navio panamenho e sua hélice de garra cortante temia que as amarras  pudessem estourar e nada o deter de sua força feito um gordo bêbado caindo sobre as mesas do bar verão vermelho

ele estava ali parado e era dia e eu podia correr e fugir de sua fuga estava ali preso nos cabeços do cais enterrado de barriga no lodo desta cidade

esse terror da figura negra do navio  e suas sombras dançantes na água de sua cor na noite de pequenas luzes contra os contornos da igreja de navegantes das carteiras de cigarros camel jogadas do bordo pelos marinheiros noruegueses dos trilhos dos guindastes e da vida subterrânea da estiva e dos consertadores

esses eram os passos medidos até eu chegar perto do cargueiro panamenho ter coragem de passar a mão no seu costado e sentir suas cicatrizes de soldas um animal submergível na água uma cidade marinha flutuante de perto tanto medo pendurado de bandeiras como um continente uma ilha que de longe me pareceu tão lindasubindo as margens do Itajaí açu

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

 “Pois é, meu caro. Como diria Drummond, 'o primeiro amor passou, o segundo amor passou.. et la vie continue'.
Trinta anos se passaram e tudo ficou muito mais caótico. Tivemos que criar técnicas mais sofisticadas de sobrevivência, perder a ternura sem endurecer, aprender a dissimular sem mentir, a responder com perguntas, a proferir sem nenhum eco em resposta. Somos os mistificadores do caos. Que os deuses nos poupem. Somos uma hipótese sem tese. Indemonstráveis, portanto".


Massao Ohno